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Monthly Archives: May 2013

   É agora necessário que eu diga que espécie de homem sou.O meu nome não importa, nem qualquer detalhe externo sobre mim. É acerca do meu carácter que algo deve ser dito.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em meu redor, e eu com elas, uma incerteza para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério, e tudo é significado.Todas as coisas são «desconhecidos», símbolólicas do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo demasiado inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelo ambiente que rodeou a minha infância, pela influência dos realizados sob o impulso destas mesmas tendências, por tudo isto o meu carácter é do género interior, egocêntrico, calado, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste na aversão, no horror, na incapacidade, que impregnam tudo que sou, física e mentalmente, de actos decisivos, de pensamentos definidos. Nunca tomei uma decisão nascida do auto-domínio, nunca dei sinais exteriores de uma vontade consciente. Nenhum dos meus escritos foi concluído; sempre se interpuseram novos pensamentos, associações de ideias extraordinárias, impossíveis de excluir, com o infinito como limite. Não consigo evitar a aversão que tem o meu pensamento pelo acto de acabar seja o que for. Uma única coisa suscita dez mil pensamentos, e desses dez mil pensamentos surgem dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central onde os seus detalhes sem importância mas a eles associados, possam perder-se. Passam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam dentro de mim. Não reflicto, sonho; não estou inspirado, deliro. Posso pintar mas nunca pintei, posso compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, encantadores voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali a dormitar até que morrerem, pois não tenho poder para lhes dar corpo, para os transformar em coisas do mundo exterior.
O meu carácter é tal que eu detesto o princípio e o fim das coisas, pois são pontos definidos. A a ideia de se encontrar uma solução para os mais elevados, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia, aflige-me; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo horroriza-me. Que as coisas mais importantes se realizem,  que todos os homens venham um dia a ser felizes, que se descubra uma solução para os males da sociedade, só imaginá-lo enlouquece-me. Contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso de um modo difícil de conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me recordo de nenhum livro que tenha lido, a tal ponto eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus, ou antes, provocações de sonhos. A minha própria recordação dos acontecimentos, das coisas externas é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito daquilo que foi a minha vida passada. Eu, o homem que sustenta que o dia de hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

 

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa, Prosa Íntima e de Autoconhecimento.

  • Há doenças piores que as doenças,
    Há dores que não doem, nem na alma
    Mas que são dolorosas mais que as outras.
    Há angústias sonhadas mais reais
    Que as que a vida nos traz, há sensações
    Sentidas só com imaginá-las
    Que são mais nossas do que a própria vida.
    Há tanta cousa que, sem existir,
    Existe, existe demoradamente,
    E demoradamente é nossa e nós…
    Por sobre o verde turvo do amplo rio
    Os circunflexos brancos das gaivotas…
    Por sobre a alma o adejar inútil
    Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

    Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

    (Fernando Pessoa)

“O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir – não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo, mas para o lugar qualquer – aldeia ou ermo – que tenha em si o não ser este lugar. Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar…”

(B. Soares).

“Cada dia é um dia, 
me diriam nas contas dos meus vícios
E eu me esbarro numa parede de controles
Eu
em vale tudo
Você
e as amargas doses de 100 ml 
às quais me obrigo
Amargo!
Mas desce
Me desce
Poucos, aos poucos
ainda que cada vez mais
tão poucos!”

Eu até decidi que esperaria
Passou-me então o tempo que o fosse
e assim permaneci, calmamente
Até que a espera, ela mesma
impacientou-se, afugentou-se,
por conta própria tomou qualquer rumo
e nada do que esperei surgiu ou sobrou…

Aquela noite era para decidirmos

Se ela e eu

Deveríamos ser amantes.

Abaixo da coberta

do escuro

ninguém poderia ver, você sabe.

Eu me debrucei sobre ela, esta é a verdade.

e quando eu o fiz,

esta é a verdade, eu juro,

eu disse,

como um educado familiar

“paixão é um precipício –

então você pode, por favor,

sair do caminho?

Saia do caminho, por favor!”

 

 

V. Mayakovsky.

(Tradução livre)

* e como assim este poema ainda não estava aqui?