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Monthly Archives: October 2012

“Toda imagem é um ato de coragem.”

Ela concluiu após olhar todas aquelas fotografias, algumas pelas quais ela mesmo foi responsável. Fotografar é ver-se ali, é ver também um outro, construído conforme ao que dele tivemos acesso: um sorriso, um rosto virado hesitante, uma festa de aniversário, a tão sonhada viagem e tudo o quanto possa tornar-se uma eterna lembrança após os anos que nos são dados.

Somos a negação de nosso próprio tempo, e nos tornamos nosso próprio paradoxo no momento em que entregamos nossa imagem atual às imagens anteriores. “Não, meu tempo não passou; sou apenas um eterno pertencimento a mim mesmo, a isto que vejo, que foi isto que é e que sempre será igual”. E, ao mesmo tempo, “admito, fui outro, um tanto diferente, que sonhava em conquistar uma melhor versão, seja esta versão a criação atual ou não”.

Ela viu nas imagens todos estes atos de coragem, um dos poucos momentos sinceros de admissão de tantas ocasiões e transformações. “Era este o lugar que ele sempre frequentava”; “ela, nossa, como se vestia mal!”; “por uns anos este foi meu melhor amigo, hoje, não sei onde está”; “este era o meu tio mais querido e, de alguma forma, sempre será”.

As imagens são a coragem do reviver, um anteparo para as comparações, a verificação de algumas frustrações e outros terrores, o levantar das fugas do combinado, do jogar fora o planejado. Nas imagens ela percebia o que há pouco existiu, reviu um adeus ou outro, desconheceu aquele rosto que em um dos frames tão próximo ao seu estava.

Ela se desafiava a responder para onde ia tanta vida, sua e de tantos outros seres imagéticos, tantos quantos nem fazer ideia queria. Imaginava a existência de um mundo alternativo de vidas, onde todas aquelas imagens se encontravam, se cumprimentavam entre mãos, braços, corpos e cenas inteiras, passavam uma por entre as outras num cruzar místico de cores, em danças simbólicas de eterno.

Ela viu seu rosto, de alguma forma, e sorriu em troca dos anos que a imagem lhe concedeu. Aquela, ali no meio, dona do vestido rosa e cabelos cheios, era ela. Esta, hoje, também.

Era 1999. O mundo lhe parecia uma outra coisa que não as atuais construções. No ano dos três números iguais, tudo ainda era possibilidade, e não uma coleção de fatos mal amados. Tudo era a história que escreveria, e não os momentos que lhe seriam jogados, que aleatoriamente viveria.

Em 1999 a menina olhava e para todos os lados via gente. Quando era natal,  a gente juntava um pouco de cada coisa, inclusive de gente mesmo, e esquecia as dificuldades falando engraçado, dividindo os mais bem feitos pratos, desembrulhando os presentes – desde que depois da meia noite. Quando páscoa, o tal momento se mostrava como tradição, assim como nos aniversários. Quando um dia qualquer, o momento se mostrava mesmo era como a vontade da gente de ser gente em conjunto o tempo inteiro, sem precisar de tantos motivos para seus instantes.

E naquele ano a menina foi, se jogou numa festa de aniversário. Criança, de saia branca, no meio de palafitas e lama, numa comum noite de final de julho. Era a Natália, ela se lembrou, que ficava um pouco mais velha, embora ainda fosse tão, mas tão pequenininha, como sempre foi. E lá estava a família da Natália, ao redor do seu vestido branco rodado enfeitado com o que mais havia de especial, comprido cabelo negro como a cor em si, e da enorme torta doce que serviria aos convidados, bem no meio da vila formada pelas várias casas de madeira que pertenciam às partes do inteiro da família, num mesmo grande terreno.

Acabou a festa. Ainda era cedo, ainda que para criança o cedo sempre pareça um tanto tarde, sendo o real tarde um intenso ato de coragem e desafio. E, então, no meio do caminho do pós final de festa, a menina ouviu: “parece que aconteceu algo em sua casa”…

Não havia nada a acontecer. Os dias eram regras assim, daquela forma, como deveria ser. A mãe penteou o cabelo, escolheu a roupa, e entregou à menina aquilo que seria o presente da Natália. Agora, de volta à própria casa, com uma Natália mais velha já para trás, a menina se perguntou: aonde estava a gente toda? Toda gente sumiu, assim, de uma vez só. E no lugar surgiram pessoas que ainda não eram gentes, já que vistas pela primeira vez. A menina sofria o encarar – aquele de que tudo ficaria quase bem, ainda que o tal tudo passasse a ser outra coisa. Havia um cheiro, estranho, e a música da novela de todas as noites, que não lhe saiu da cabeça. Até que de certa forma entendeu que aconteceu, ou que pelo menos começou a acontecer aquilo que se terminaria poucos dias depois, e que até aquilo que para crianças normalmente não se deixa acontecer, estava ali, representado pelo vazio.

 

São as coisas no meio, é aquilo que fica na borda e contrasta. É a passagem atrapalhada, são todas as vontades atropeladas. Mas a gente é, e por isso faz e faz. E talvez, se calhar, ainda consegue. A gente olha pela janela e aos poucos se comunica com o sol. Assim será, é o que resta compreender. Se há mais um dia, que haja pelo menos nada menos do que um querer tentar. Ainda que difícil, que seja o objetivo o de, pelo menos, tentar. E talvez, se calhar, a gente ainda consegue.

Você era quem sabia do por que da minha vontade de Rue de Ménilmontant, talvez mesmo nos momentos em que nos encontramos, ainda sem palavras, pelas primeiras vezes, ali na sala onde muitos muito falavam sobre o que pouco nos interessava. E eu não era violinista, mas você adivinhou: no fundo de um armário eu guardo um violino frustrado, de cordas frouxas e sem breu, e também sem vontade, e simbolicamente este foi o início perfeito de todas as conversas. Em algum lugar deveria se colocar toda a luz que eu precisava usar para escrever, mas por motivos que se construíam sem qualquer fonte, ela ainda se desfazia. Tempo depois eu, questionada, lhe confessei: era eu quem construía tudo isto. Eu precisava de tantos quantos fossem os nós, e de qualquer circunstância que permitisse que nada acontecesse.

Eu sempre ouvia sobre a necessidade de conseguir sobreviver, eu sempre recebia conselhos que mais pareciam lamentos frente a tudo o que eu questionava, e as propostas insurgentes de sobrevivência raramente me tocavam.

Para que minhas explicações para quem não poderia sentir? Era a cidade, eram as tantas faltas de encontros, eram os tantos diálogos presos. Era você quem sabia das Rues de uma vida, por isso me convidava sempre para as tantas pré-rues, para tantos ensaios, e eu ria a cada desculpa que você pedia. E no momento em que você disse para pensarmos em como alcançar tantas coisas, eu assumi a simplicidade das minhas vontades, desde que você também se alcançasse. Sabe aquele caminho, que precisávamos refazer? Alguns dos nós que eu precisava pareciam se desfazer.

Revelamos: nosso desequilíbrio era comum. E rimos, mas não, não era vinho, não eram só os copos coloridos. Era tudo o que doía. Era tudo o que ficou nas suas antigas Rues, era tudo o que estava em qualquer Rue que eu queria e desconhecia. Mas alcançaremos…