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Monthly Archives: September 2010

Munch , Van Gogh, Picasso – De muitos artistas sempre se disse que não batiam lá muito bem da cabeça. Pois agora aumentam as evidências científicas de que criatividade e doença mental andam de fato muito próximas.

Muitas pessoas já me caracterizaram como louco, escreveu certa vez Edgar Allan Poe (1809-1849). “Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência”. Nessa sua suspeita de que genialidade e loucura talvez estejam intimamente entrelaçadas, o escritor americano não estava sozinho. Muito antes, Platão mostrara acreditar em uma espécie de “loucura divina” como base fundamental de toda criatividade.

Uma lista interminável de artistas célebres, parte deles portadores de graves transtornos psíquicos, parece confirmar o ponto de vista do filósofo grego. Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Lord Byron, LievTolstói, Serguei Rachmaninov, Piotr Ilitch Tchaikóvski, Robert Schumann – o célebre poder criativo de todos eles caminhava lado a lado com uma instabilidade psíquica claramente dotada de traços patológicos. Variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool ou drogas ainda hoje atormentam a vida de muitas mentes criativas.

Será mera coincidência?

No início do século XX, a busca pelas raízes da genialidade era um dos temas mais palpitantes da investigação psicológica. Cientistas de ponta tinham poucas dúvidas de que certos males psíquicos davam asas à imaginação. “Quando um intelecto superior se une a um temperamento psicopático, criam-se as melhores condições para o surgimento daquele tipo de genialidade efetiva que entra para os livros de história”, sentenciava o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910). Pessoas assim perseguiriam obsessivamente suas idéias e seus pensamentos – para seu próprio bem ou mal -, e isso as distinguiria de todas as outras.

Sigmund Freud também se interessou pelo assunto. Convicto de que encontraria “algumas verdades psicológicas universais”, analisou vida e obra de artistas e escritores famosos, buscando pistas de transtornos mentais. Mas foi somente a partir dos anos 70 que Nancy Andreasen, psiquiatra da Universidade de lowa, começou a investigar de forma sistemática a suposta ligação entre genialidade e loucura. Participaram de sua experiência 30 escritores cujo talento criativo havia sido posto à prova na renomada oficina de autores da universidade.

O autor

ULRICH KRAFT é médico e jornalista científico.

      – Tradução de Sérgio Tellarol

Andreasen examinou essas personalidades à procura de distúrbios psíquicos e comparou os dados obtidos aos daqueles grupos de um grupo de controle: 80% dos escritores relataram perturbações regulares do humor, ante 30% no grupo de controle. Quarenta e três por cento dos artistas satisfaziam os critérios para o diagnóstico de uma ou outra forma de patologia maníaco-depressiva, o que, no grupo de controle, só se verificou em uma a cada dez pessoas. Durante o estudo, dois escritores cometeram suicídio – dado que, segundo Andreasen, não seria estatisticamente significativo. A psiquiatra comprovou pela primeira vez e com métodos científicos que, por trás da suposta conexão entre criatividade elevada e psique enferma, haveria algo mais que o mero e surrado lugar-comum.

Em 1983, Kay Redfield Jamison conduziu um estudo em que obteve resultados claros e semelhantes. Psicóloga da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ela contatou 47 pintores e poetas britânicos renomados. Seguindo os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), examinou a presença de transtornos de humor caracterizados por fases depressivas.

Segundo o Manual, esses transtornos são marcados por estados depressivos que duram de duas a quatro semanas e prejudicam sensivelmente o cotidiano dos pacientes, que não conseguem animar-se para nada, sofrem perturbações da concentração e do sono e têm pensamentos negativos beirando o desespero total. A presença desses sintomas aponta para o chamado transtorno depressivo maior. Mas, além desse, há também os transtornos bipolares, nos quais fases depressivas são alternadas com picos de euforia – os episódios maníacos. Nesse caso, os pacientes quase não dormem, estão sempre ocupados com alguma coisa, seus pensamentos saltam de um tema a outro e eles atribuem a suas idéias

– e, em geral, também a si próprios – grandeza absoluta.

Tais males psíquicos, caracterizados como depressões maníacas, estão entre os transtornos de humor pelos quais Jamison procurava em seu estudo. Ela constatou que quase 40% dos artistas examinados haviam requerido ajuda médica alguma vez na vida – taxa 30 vezes mais alta que a verificada entre a média da população. A corporação dos escritores revelou ser a que sofria dos problemas psíquicos mais severos. Um a cada dois poetas já havia recorrido a tratamento psiquiátrico em virtude de depressão ou episódios maníacos.

Na década de 80, Hagop Aksikal entrevistou outros 20 artistas europeus, tendo por base os critérios do DSM. Dois terços deles sofriam de episódios depressivos recorrentes, muitas vezes combinados com os chamados estados hipomaníacos – forma menos pronunciada da mania. Como constatou esse psicólogo da Universidade da Califórnia, em San Diego, metade dos artistas tinha enfrentado depressão em algum momento da vida. Tendência semelhante, aliás, Aksikal já havia observado entre músicos de blues nos Estados Unidos.

Com base nessas pesquisas, Jamison concluiu que o grande número de artistas com diagnóstico de depressão ou de transtornos bipolares já não podia ser atribuído ao acaso. A pesquisadora admitia deficiências metodológicas também em seu próprio estudo — por exemplo, o número demasiadamente reduzido da amostra -, mas a conexão entre instabilidade psíquica e potencial criativo era evidente.

Ruth L. Richards e colegas da Harvard Medicai School, em Boston, tentaram abordar a questão de outro ponto de vista. Em vez de saírem em busca de males psíquicos em artistas reconhecidos, inverteram a pergunta: portadores de enfermidades psíquicas seriam particularmente criativos? Eles examinaram a criatividade de 17 pacientes com depressão maníaca manifesta e de 16 ciclotímicos – a forma mais amena do transtorno bipolar -, com base na chamada Lifetime Creativity Scale.

Nessa escala de criatividade influenciam não apenas os testes relacionados ao pensamento inovador e original, mas também o desempenho criativo nas esferas pessoal e profissional. Os pacientes saíram-se melhor que o grupo de pessoas utilizado para comparação, composto de indivíduos sem qualquer histórico psiquiátrico.

O tipo de transtorno desempenhou aí papel bastante decisivo. Os participantes ciclotímicos revelaram-se muito mais criativos. Além disso, ficaram atrás de seus familiares sem distúrbios psíquicos evidentes, também avaliados. A hipótese aventada pelos pesquisadores foi, portanto, a de que os parentes dos pacientes talvez tendessem à instabilidade psíquica, cuja manifestação neles se daria de forma tão amena que não lhes causaria problemas. “É possível que pessoas com tendência reduzida, talvez até imperceptível, à instabilidade bipolar sejam mais criativas”, concluíram os pesquisadores.

Nesse meio tempo, o pensamento aguçado, de criatividade incomum, e a produtividade elevada passaram até mesmo a serem considerados indícios no diagnóstico de fases maníacas. Mas como uma enfermidade tão perturbadora e destrutiva pode incrementar nosso poder criativo? Afinal, normalmente reina o caos entre os maníaco-depressivos, tanto no aspecto profissional quanto no pessoal. Em meio a episódios maníacos, endividam-se, mergulham em relacionamentos duvidosos e aventuras sexuais sem medir as conseqüências. Agressões e até mesmo alucinações integram o quadro. Então, a esse apogeu temporário segue-se sempre o mergulho em depressão profunda.

” Se Soubesse o que é Arte… não contaria para ninguém”, brincou Pablo Picasso, o mais importante representante do cubismo. Mulher Adormecida com Persianas (1986).

O psicólogo americano Joy Paul Guilford (1897-1987) definiu criatividade como a capacidade de, diante de um problema, “encontrar respostas incomuns, de associação longínqua”. Para chegar a uma idéia original, abandonam caminhos já trilhados e pensam de modo diferente. O intelecto, então, não se afeita à busca de uma única solução correta, mas move-se em diversas direções. Quanto mais fluentes e livres jorrarem os pensamentos, melhor.

São precisamente esses talentos que os portadores de transtornos bipolares exibem em abundância na fase maníaca. Seu cérebro trabalha à toda, despejando idéias nada convencionais. Essa imensa produção está longe de resultar apenas em coisas sensatas, mas pouco importa: a massa de idéias que brota da mente maníaca eleva a probabilidade de que haja entre elas alguns lampejos mentais “genuínos”.

Vicent Van Gogh – Histórico de uma doença

Concluída a escola, o jovem Vincent van Gogh vai trabalhar na compra e venda de objetos de arte, primeiro em Haia, depois em Londres. A infelicidade no amor o lança na primeira depressão grave. Seus pensamentos voltam-se para a religião. Passa quatro anos na Bélgica trabalhando como pastor Ali, ajuda no que pode e luta pelos direitos ‘\ das pessoas. Contudo, isso desagrada a Igreja, da qual é expulso, fazendo-o mergulhar em nova crise. “Minha única angústia é descobrir como posso ser útil ao mundo”, escreve ao irmão Theo, seu mais íntimo confidente.

Somente aos 27 anos, Vincent decide ser pintor. Lança-se ao trabalho com enorme intensidade. Em 1886, vai viver com Theo em Paris, onde sua saúde piora. Começa a sofrer de cãibras na mão esquerda. Passados os acessos, fica perturbado e a memória falha por breves períodos – primeiro indício da epilepsia diagnosticada mais tarde. O gosto do pintor pelo absinto contribui para o agravamento de seu estado. Sabe-se hoje que a bebida contém uma substância que favorece ataques epilépticos e psicoses. Seu temperamento explosivo e as oscilações de humor o tornam persona non grata para vários de seus conhecidos. “É como se fossem duas pessoas: uma delas, de grande talento, culta e sensível; a outra, egoísta e fria de sentimentos”, descreve Theo.

No início de 1888, Vicent vai para o Sul da França, “ cansado e desesperado”, como ele próprio diz, Ali, sintomas de um grave transtorno psíquico manifestam-se com crescente nitidez. Períodos de atividade febril alternam-se com apatia e esgotamento total – sinais típicos de depressão maníaca. Sentindo-se só, pede ao amigo Paul Gauguin que se junte a ele. juntos, os dois pintores fundam o “Estúdio do Sul”. Mas este relacionamento deteriora, culminando numa catástrofe: em dezembro de 1888, van Gogh o ameaça com uma navalha e termina por amputar a própria orelha.

No hospital, o primeiro diagnóstico: psicose grave. O médico Felix Rey também suspeita de epilepsia larvada, em que os acessos convulsivos têm forma bastante amena. Em compensação, imperam outras ocorrências psíquicas e o paciente oscila entre euforia extrema e depressão profunda, acompanhadas de angústia e insônia. Alucinações e mania de perseguição integram o quadro dos sintomas, bem como pronunciada emotividade, que, com freqüência, culmina em solicitude exagerada ou religiosidade extrema.

A epilepsia de lobo temporal é tida como a explicação mais provável para o perturbado estado mental de van Cogh. Rey o trata com brometo de potássio. Passados alguns dias, o artista se recupera. Embora o médico chame sua atenção para os perigos do absinto, o pintor o ignora. Essa é uma das razões para as várias recaídas, que requerem repetidas internações. Seu estado psíquico é tão instável que, em maio de 1889, interna-se espontaneamente no sanatório de Saint Rémy.

O médico da instituição confirma a epilepsia, mas suspende o tratamento com brometo de potássio. Apesar dos episódios de uma grave psicose, van Gogh produz no ano seguinte mais de 300 obras. Depois, muda-se para Auverssur-Oise, nas proximidades de Paris. Nos campos ao redor de Auvers, pinta algumas de suas grandiosas paisagens. Em carta a Theo, menciona que gostaria de aumentar sua paleta de cores e pede apoio ao irmão. Três dias depois, o grande artista se mata com um tiro no peito.

O psicólogo Eugen Bleuler, contemporâneo de Freud, via aí o elo procurado entre genialidade e doença mental. “Mesmo que apenas os casos amenos produzam algo de valor, o fato de neles as idéias fluírem com mais rapidez e, sobretudo, de as inibições desaparecerem estimula as capacidades artísticas.”

Também para Jamison, o segredo está no pensamento rápido e flexível, bem como no dom de unir coisas que, à primeira vista, não possuem qualquer conexão entre si. O que Bleuler, no passado, só podia supor hoje é confirmado por estudos científicos. Assim, pacientes de hipomania mostram superioridade em testes de associação de palavras: num espaço de tempo delimitado e com uma palavra dada, são capazes de associar quantidade bem maior de conceitos que pessoas em perfeitas condições psíquicas. Dão menos respostas estatisticamente “normais” que as do grupo de controle, mas encontram soluções heterodoxas em número três vezes maior.

Hipomaníacos chamam a atenção também por seu modo de falar. Tendem a fazer uso de rimas e empregam com freqüência associações sonoras, tais como as aliterações. Além disso, seu vocabulário compreende em média três vezes mais neologismos que o de uma pessoa saudável. E mais: nos pacientes em fase maníaca, a rapidez do processo de pensamento traduz-se numa elevação do quociente de inteligência.

Maníaco-depressivos exibem também certas qualidades não cognitivas muito úteis aos artistas. Robert De-Long, psicólogo da Harvard Medical School, pediu a um grupo de crianças, todas com sinais precoces de transtorno bipolar, que fizesse desenhos sobre um tema.

Na comparação com o grupo de controle, não apenas seu nítido e transbordante poder de imaginação chamou atenção. DeLong ficou ainda mais impressionado com a extraordinária capacidade de concentração dessas crianças, que se dedicaram durante horas à tarefa, sem se deixar distrair por coisa alguma. Como resultado, seu brilhantismo revelou-se tanto no desempenho espantoso da memória quanto nos desenhos detalhados.

Energia fabulosa e concentração total caracterizam também as fases criadoras de muitos pintores, escultores, escritores e poetas. Muitos deles varam noites escrevendo ou passam horas sem fim no ateliê, sem dormir.

      LIMIAR DA LOUCURA

Nancy Andreasen acrescenta outra explicação: “o sistema nervoso, afinadíssimo”, simplesmente perceberia mais informações sensoriais, transformando-as em idéias criativas. Embora sem comprovação definitiva, a psicóloga supõe que a causa seja “um defeito nos processos cognitivos que filtram esses estímulos”.

No final de 2003, Shelley Carson, da Universidade de Harvard, e Jordan Peterson, da Universidade de Toronto, descobriram que Andreasen estava certa. Eles recrutaram 25 estudantes que haviam se destacado por seu desempenho criativo extraordinário e, com auxílio de um teste, puderam determinar a chamada inibição latente em cada um deles – mecanismo cognitivo que exclui do fluxo contínuo de dados sensoriais aqueles que a experiência já demonstrou serem de pouca valia. Nos colegas não criativos, esse processo de filtragem inconsciente se revelou nitidamente mais pronunciado.

Em decorrência da menor inibição latente, pessoas criativas acolhem mais impressões de seu entorno. Mas há também o outro lado dessa moeda. “Quando uma pessoa tem 50 idéias diferentes, o provável é que só duas ou três sejam boas de fato”, explica Peterson. “É necessário saber diferenciar essas idéias para não submergir em meio a tantas delas. Daí a importância da inteligência e da memória operacional para evitar que as mentes criativas se afoguem numa torrente de informações”, conclui.

Será que os pacientes de transtorno bipolar ultrapassam o limiar da loucura por quase sufocar sob a massa enorme de idéias e pensamentos? Para Carson e Peterson, isso é precisamente o que sua experiência deixa claro: “Um grau reduzido de inibição latente associado a uma extraordinária flexibilidade de pensamento pode, sob certas circunstâncias, predispor o indivíduo às doenças mentais ou, sob outras circunstâncias, a façanhas criativas”.

Nessa questão, Jamison – que também sofre de depressões maníacas — defende uma tese interessante. Ela acredita que o mergulho recorrente na depressão evita que portadores de transtorno bipolar se percam em pensamentos e idéias obscuras. Indivíduos depressivos — atormentados por dúvidas, insegurança e hesitação – teriam um juízo mais realista das coisas. Seu “mecanismo interno de edição”, como Jamison o denomina, operaria com a correspondente sensibilidade, ou seja, verificaria a utilidade das ide»; produzidas pela mente hiperativa e excluiria as cores berrantes do excesso. Sendo assim, todas as idéias que, fase maníaca, se revelam grandiosas seriam submetidas ao crivo de um extremo rigor crítico.

Já o pioneiro Guilford via o segredo do pensamento criativo na capacidade de estabelecer um vínculo entre o racional e o irracional, o conhecido e o desconhecido, o convencional e o não convencional. Se, porém, a criatividade brota dessas oposições, espíritos criativos arriscam-se continuamente a ir longe demais com suas idéias e seus pensamentos, ultrapassando as fronteiras do inteligível.

      ARTE COMO TERAPIA

Uma rápida visita aos livros de história nos mostra como é tênue a linha que separa a genialidade da loucura. Seja a visão heliocêntrica do mundo de Copérnico ou a teoria da evolução de Darwin, muitos lampejos geniais foram a princípio recriminados como produto de um cérebro doentio. Hoje, porém, ninguém mais duvida da saúde psíquica de tais personalidades.

Mas não são poucos os psicólogos que sustentam que portadores de doenças psíquicas com freqüência trabalham em áreas criativas apenas porque a atividade artística os ajuda a proteger a própria mente da destruição. “A literatura me pegou pela mão e me salvou da loucura”, ponderava a poeta americana Anne Sexton (1928-1974), que, em virtude de uma grave psicose, vivia sendo internada em clínicas psiquiátricas.

Robert Schumann (1810-1856), outra mente criativa atormentada por variações de humor, mania, fixações.

Criatividade como saída para a crise? Residiria aí o famigerado vínculo entre poder de criação e sofrimento psíquico? O fato de tantos pacientes psiquiátricos se beneficiarem de terapias envolvendo a pintura, a dança ou a música parece confirmar essa hipótese. Contudo, dois fatos não devem ser esquecidos: a maioria dos doentes não demonstra possuir fantasia extraordinária nem criatividade especial; tampouco a maioria dos escritores, poetas, músicos, designers, escultores ou pintores reconhecidos revela-se portadora de algum distúrbio mental.

A imagem excessivamente utilizada e romantizada do gênio maluco desacredita em certa medida o trabalho, o caráter e o estado mental dos que lidam com arte. E o fato de muitos artistas com enfermidades psíquicas terem recusado tratamento, no passado, talvez tenha contribuído para essa visão distorcida. O pintor norueguês Edvard Munch (1862-1944), por exemplo, que era maníaco-depressivo, temia que uma terapia pudesse extinguir seu poder criativo. “Prefiro continuar sofrendo desses males, porque são parte de mim e de minha arte”, declarou.

Sem ajuda médica, porém, corre-se o risco de que depressões e transtornos bipolares se acentuem com o tempo. Munch teve sorte: estava relativamente bem nos últimos anos de vida. Uma declaração da escritora americana Sylvia Plath nos diz um pouco sobre o sofrimento de artistas vítimas de distúrbios psíquicos: “Quando se tem uma doença mental, ser um doente mental é tudo que se faz, o tempo todo […] Quando eu era louca, isso era tudo que eu era”. Em casa, na manhã de 11 de fevereiro de 1963, essa poeta de extremo talento, vítima de depressão grave, abriu a torneira do gás. Tinha 30 anos.

Para conhecer mais

Decreased Latent Inhibition is Associated with Increased Creative Achievement in High-Functioning Individuais. S. Carson et ai. em journal of Personality and Social.

Psychology 85 (3), 2003, págs. 499-506.

Psychotherapy with People in the Arts: Nurturíng Creativhy. G. Schoenewolf, Haworth Press Inc., 2002.

Uma Mente Inquieta. K. R. Jamison, Editora Martins Fontes, 1999.

Em busca do gênio da lâmpada. Ulrich Kraft, em Viver Mente&Cérebro ns 142, pág. 44.

http://www.psiquiatriageral.com.br/psicopatologia/sob_genios_loucos.htm

O mal sagrado de Dostoiévski
A obra do escritor russo é repleta de detalhes que revelam a doença de que ele sofria: a epilepsia. Seus personagens apresentam sintomas como a “aura extática” (sensação de tocar o absoluto), e preocupação intensa com a moral, Deus e o destino.
por Sebastien Dieguez

Desde o começo de sua carreira de escritor, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1888) sofreu de uma epilepsia que não cessa de fascinar os críticos literários e médicos. Um leitor atento encontrará ao longo de sua obra os traços deixados pela epilepsia – o “grande mal”, como ela já foi chamada.

Numa época em que a doença ainda era pouco conhecida, o escritor oferecia, por meio de alguns personagens, uma descrição muito precisa dos sintomas mais estranhos que ela suscita, em especial as crises místicas. Por outro lado, os conhecimentos modernos sobre o tipo de distúrbio de que ele aparentemente sofria, a epilepsia do lobo temporal, lançam nova luz sobre a personalidade do autor e o conteúdo de sua obra.

Filho de um pai despótico e violento, médico do exército, e de uma mãe debilitada pela tuberculose, o jovem Dostoiévski recebeu educação rígida, antes de ingressar, aos 16 anos, na escola superior militar de São Petersburgo, onde seguiu o curso de engenharia militar. Seu pai morre nessa época, possivelmente de uma apoplexia, mas o tirano pode ter sido assassinado por seus subordinados. Se o jovem estudante ainda não sofria crises epilépticas, sua saúde já se mostrava frágil. Era emocionalmente instável, hipocondríaco e havia apresentado ao menos um episódio de alucinação auditiva, uma afonia passageira e dores de cabeça.
Além disso, já conhecia a miséria financeira. Ele então visa com fervor a literatura e aos 25 anos publica seu primeiro romance, Os pobres diabos , que logo obtém grande sucesso. Infelizmente, as publicações seguintes fracassam, mesmo o notável O duplo. Ele então se enche de dívidas e afunda na depressão.

Pior ainda, será preso pela polícia imperial em companhia de outros membros do minúsculo grupo de estudantes com aspirações revolucionárias que freqüenta na época. Depois de oito meses de prisão, é condenado à morte. No dia da execução, os condenados são amarrados aos postes, os soldados apontam para eles, mas… Não atiram. O czar comutara a pena de morte por trabalhos forçados. A proximidade da morte permanece como uma espécie de encenação. Pode-se imaginar o impacto que um simulacro tão sinistro teve sobre um ser já fragilizado.
Quatro anos de prisão siberiana o aguardavam, período que o escritor descreveria como “um tempo em que fui enterrado vivo e trancado numa tumba”. Ali, descobrirá a promiscuidade com os outros detentos e a “alma russa” que explora em suas obras. Ele também encontrará a Deus: os Evangelhos são a única leitura permitida aos prisioneiros.

Dostoiévski passa pelas primeiras crises generalizadas, descritas em sua correspondência e nos relatórios do médico militar. Livre, ele ainda precisou servir num regimento de infantaria na hostil Sibéria. Ao fim deste exílio forçado de dez anos, pôde enfim retomar a escrita. Mas as coisas não melhoram muito no plano pessoal: miséria, morte de sua primeira mulher, morte de seu irmão e confidente Mikhail, desacordo na família, destruidora paixão pelo jogo, credores que o perseguem, morte de dois filhos e uma saúde cada vez mais cambaleante, com crises mais e mais graves e freqüentes.

Um mal salvador?
Que lugar ocupa a epilepsia nessa enxurrada de problemas e golpes de azar? Paradoxalmente, talvez tenha sido a doença a salvar Dostoiévski da penúria mental. Foi possível reconstruir a influência das crises sobre sua obra por meio de múltiplas fontes. Sua correspondência, seu diário, o testemunho de pessoas próximas e dos médicos que o examinaram forneceram informações preciosas, mas as indicações mais reveladoras provêm dos personagens de seus romances, através dos quais ele fala e que nos fazem intuir o caráter salvador de seu mal.

Para compreender o impacto da epilepsia sobre a vida de Dostoiévski, lembremos o que é essa doença. A epilepsia não se resume a uma simples perda da consciência acompanhada de espuma nos lábios e convulsões. Estas são as “crises generalizadas”, também chamadas de crises de grande mal, das quais Dostoiévski efetivamente sofria, mas que não constituem o aspecto mais interessante de sua patologia. De modo geral, a epilepsia representa uma disfunção dos mecanismos de transmissão das células nervosas com causas diversas: predisposição genética, seqüela de um traumatismo, alcoolismo, tumor.
Normalmente, os neurônios têm propriedades excitantes e inibidoras que lhes permitem se comunicar e se organizar em redes complexas. Quando acontece uma crise epiléptica, o processo de excitação se acelera e a transmissão se propaga de um neurônio a outro sem que nada possa pará-lo. Segue-se uma sincronização deletéria, uma “tempestade cerebral” da atividade cortical que, caso se estenda por todo o cérebro, produz crise generalizada com perda de consciência, podendo levar ao coma.

O cérebro suporta que apenas um número determinado de seus componentes funcione ao mesmo tempo. Entretanto, diversas crises resultam de sincronizações parciais, limitadas a certas regiões do cérebro, sem chegar à tempestade generalizada. Tais crises, durante as quais o paciente pode continuar consciente e de pé, são chamadas de “focais” ou “parciais”. Os sintomas dependem então das regiões afetadas e apresentam grande variedade: alucinações auditivas, olfativas ou visuais, ações involuntárias, dores, sensações viscerais, torpor, paralisia, distúrbios de elocução e até orgasmos.

Um dos grandes méritos do neurologista inglês John Hughlings Jackson, na segunda metade do século XIX, foi elencar as epilepsias cujas repercussões são de ordem unicamente psicológica: o paciente permanece consciente, mas sofre alterações impressionantes nos processos mentais. Ele pode ficar num estado de sonho acordado ou sujeito a episódios de déjà vu. Suas idéias podem fugir assim que aparecem ou, ao contrário, seu campo de consciência pode ficar focado em uma idéia ou um problema obsessivo. As preocupações do paciente são então de natureza puramente intelectual ou moral. A vida afetiva também é afetada, e sensações de medo, cólera ou angústia podem aparecer.

Mais recentemente, foram notadas sensações positivas, em que o sujeito é inundado por experiências de alegria, plenitude e satifação existencial, muitas vezes com clara conotação mística ou religiosa. Fala-se então de crise ou aura extática, sendo que “aura” designa fenômenos que anunciam a chegada iminente da crise. São as sensações positivas que Dostoiévski melhor descreveu em sua obra, e podemos atribuir a ele o mérito de ter chamado a atenção dos médicos para elas. Essas auras costumam preceder uma crise de grande mal, que chamamos, portanto, de secundariamente generalizada.

Eis como Dostoiévski descreve as auras de Míchkin, personagem central de O idiota e, certamente, o epiléptico mais célebre da literatura: “Ele sonhou com a fase em que se anunciavam os ataques epilépticos quando estes o surpreendiam em estado de vigília. Em plena crise de angústia, embrutecimento e opressão, parecia-lhe de repente que seu cérebro se agitava e que suas forças vitais tomavam um prodigioso impulso. Nesses instantes rápidos como um relâmpago, o sentimento da vida e da consciência se decuplicavam nele. Seu espírito e seu coração se iluminavam com uma claridade intensa; todas as suas emoções, todas as suas dúvidas, todas as suas preocupações se acalmavam ao mesmo tempo para se converterem numa serenidade soberana, feita de alegria luminosa, de harmonia e de esperança, em favor da qual sua razão se elevava à compreensão das causas finais. (…) Estes instantes, para defini-los numa palavra, se caracterizavam por uma fulguração da consciência e por uma suprema exaltação da emotividade subjetiva. Se nesse segundo, isto é, no último período de consciência antes do acesso, ele tivesse tempo de dizer a si mesmo clara e deliberadamente: \\’Sim, por este momento dar-se-ia toda uma vida\\’, é porque, para ele, este momento valeria de fato toda uma vida”.
Instantes de plenitude
Mais adiante no romance, a doença salvará Míchkin de um assassinato. No momento em que seu rival Rogojin vai golpeá-lo com uma faca, Míchkin é aterrado por uma crise. Desesperado, Rogojin foge “como um louco”.

Vemos que a epilepsia de que sofrem certos personagens é anedota pitoresca mas, ao contrário, cumpre função na trama. Do mesmo modo, em Os irmãos Karamazov, Smerdiakov assassina seu pai simulando uma crise que lhe serviria de álibi. Depois de cometer a atrocidade, porém, ele sofre uma crise muito violenta, é tomado de loucura e se suicida.

Outro personagem notável, Kirilov, o ateu místico e suicida de Os demônios, faz a seguinte revelação: “Há instantes, duram cinco ou sei segundos, em que sentimos de repente a presença da harmonia eterna, nós a atingimos. Não é uma coisa terrestre: não quero dizer que seja celeste, mas que o homem em seu aspecto terrestre é incapaz de suportar. Ele precisa se transformar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro, indiscutível, absoluto. Abarcamos de repente a natureza inteira e dizemos: \\’Sim, é exatamente isso, é verdade\\’. Não é enternecimento… é outra coisa, é alegria. (…) Não é nem mesmo amor; oh! é superior ao amor. O mais fantástico é que é assustadoramente claro. E vem uma alegria tão imensa junto! Se ela durasse mais de cinco segundos, a alma não suportaria e talvez desaparecesse. Nesses cinco segundos eu vivo toda uma vida e por eles daria toda a minha vida, pois eles valem isso. Um pouco embaraçado, seu interlocutor pergunta: \\’Você não é epiléptico?\\’. Kirilov responde que não, mas o outro o previne: \\’Pois vai ser. Cuidado, Kirilov, ouvi dizer que era precisamente assim que começava a epilepsia. Um epiléptico descreveu-me em detalhes as sensações que precediam suas crises: era exatamente o seu estado; ele também falava de cinco segundos e dizia que era impossível suportar aquilo por mais tempo. (…) Cuidado com a epilepsia, Kirilov\\’ “.

Diversas fontes confirmam que o próprio Dostoiévski tinha um discurso muitíssimo semelhante aos que emprestava a Míchkin e Kirilov, insistindo no fato de que “nesses instantes” ele podia “realmente sentir a presença de Deus”, se sentia “em perfeita harmonia consigo mesmo e com todo o universo” e reiterava a famosa asserção de que qualquer um trocaria a vida por esses poucos segundos de plenitude.

Os neurologistas hoje concordam em diagnosticar em Dostoiévski uma epilepsia do lobo temporal com crises secundariamente generalizadas.
Afetando primeiro as partes profundas dos lobos temporais, as descargas sincrônicas produzem a aura extática e outros sintomas, propagando-se em seguida para o restante do cérebro, provocando perda de consciência e convulsões. A epilepsia de origem temporal pode produzir efeitos muito variados, e Dostoiévski chegou a escrever a seu irmão que ele sofria de “todos os tipos de crise”. Entre elas, são relevantes os estranhos fenômenos de automatismo, durante os quais o paciente realiza ações complexas sem conhecimento delas. Assim, Dostoiévski podia, num estado próximo do sonambulismo, enrolar diversos cigarros seguidos ou se levantar para abrir uma janela. Numa cena estranha de Os demônios o conspirador Starvoguin pega de repente um homem respeitável pelo nariz e o conduz assim por uma reunião social, gesto absurdo que logo em seguida ele é incapaz de explicar.

Certas manifestações podem aparecer antes mesmo da chegada da crise. Além da crise extática, não se exclui que Dostoiévski tenha sofrido outras manifestações neuropsiquiátricas que ele descreve com perfeição. Em sua obra encontramos experiências alucinatórias diversas, confusões acerca da identidade das pessoas, impressões de duplicação e ilusão de ser possuído por uma força demoníaca. Num episódio fascinante de O idiota, em que o príncipe Míchkin erra pelas ruas de São Petersburgo, o escritor nos dá uma excelente análise clínica das distorções de pensamento de que sofrem alguns epilépticos temporais antes de uma crise: estado alterado, convicção, idéia repentina, perseguição, obsessão, impulso de fervor, clarividência fugidia. Essas são as impressões “nuas”, vividas como tais, sem que algum conteúdo definível se possa aplicar a elas.

De fonte confiável, sabe-se também que Dostoiévski emitia sempre um estranho grito antes de perder a consciência, um longo estertor que sua mulher temia acima de tudo e que qualificava de inumano.

Às vezes levava vários dias até que ele se refizesse completamente de uma crise, e durante esse tempo ele sofria de sintomas que chamamos de pós-críticos. Ele ficava então confuso, muitas vezes fora de contato, incapaz de se exprimir ou de escrever corretamente. Além disso, sofria de distúrbios de memória e de uma intensa depressão, que pode ser considerada como um contragolpe assustador depois de alcançar o êxtase.

Sabe-se hoje que há também uma sintomatologia interictal, um conjunto de sintomas que se manifestam entre as crises, formando um perfil de personalidade típico da epilepsia temporal. Esta noção, ainda que continue controversa, foi muitas vezes aplicada ao autor russo, a ponto de alguns neurologistas falarem em “epilepsia de Dostoiévski”: aderência excessiva a determinadas idéias, detalhes ou pessoas; tendência compulsiva a escrever; alto senso de moralidade e preocupação com questões éticas relativas ao bem e ao mal, acompanhada de idéias místicas e religiosidade; seriedade excessiva; sentimento de culpa e perseguição; grande emotividade; falta de interesse pela sexualidade; convicção num destino pessoal fora do comum.
Certamente, a obra de Dostoiévski abunda em preocupações de ordem superior, detalhadas ao extremo e obsessivamente recorrentes, muitas vezes expostas em termos idênticos nos diferentes livros. Os temas explorados pelo autor são aqueles que o obcecaram durante toda a vida: o bem e o mal, Deus e o ateísmo, liberdade e responsabilidade, crime e punição, pureza e crueldade. Sua imensa produtividade pode certamente ser qualificada de hipergráfica, ainda que a qualidade dela ultrapasse em muito a de outros pacientes epilépticos. Testemunhas do sintoma “alto senso de moralidade”, os personagens são constantemente dominados por forças que os ultrapassam, como se fossem impelidos na direção de um destino inelutável, e longas páginas são consagradas a sua tortura mental sobre o bem e o mal, o que é permitido e o que não é, a escolha entre o perdão e a vingança. Humor e desejo físico não têm lugar preponderante em sua obra.

Devemos reduzir a genialidade desse russo às descargas sincrônicas em seus lobos temporais? Sobre isso, o próprio Dostoiévski tinha opinião clara. Acima de tudo, ele desconfiava das explicações simplistas. No discurso de defesa dos Irmãos Karamazov, por exemplo, um advogado declara que a psicologia é uma “faca de dois gumes”, no sentido de que, com um pouco de habilidade, um mesmo princípio pode servir para explicar qualquer coisa e também o contrário dela. E ele diz o mesmo sobre a neurologia. Freud, por exemplo, pensava que Dostoié-vski sofria de uma histeroepilepsia, ou seja, de um distúrbio puramente neurótico (e não nervoso), sob o pretexto de que um epiléptico não poderia ser tão genial e que seus distúrbios lhe pareciam devidos antes a uma homossexualidade recalcada e ao desejo de matar o pai.

Patologia e poder criativo
Henri Gastaut, pioneiro na epileptologia francesa, era muito cético sobre a existência das auras extáticas. Ele dizia até que os médicos eram, na verdade, ludibriados pelas descrições totalmente ficcionais de Dostoiévski e que elas desde então faziam parte do folclore médico sem que ninguém tivesse pensado em questioná-las. Por outro lado, Dostoiévski era muito consciente da origem talvez mórbida de suas idéias. Eis o que ele fez o príncipe Míchkin dizer sobre o assunto: “Que importa que meu estado seja mórbido? Que importa que essa exaltação seja um fenômeno anormal, se o instante em que ela nasce, evocado e analisado por mim depois que retomo a saúde, se assevera como de uma harmonia e de uma beleza superiores, e se este instante me toma, num grau inaudito, inesperado, um sentimento de plenitude, de moderação, de apaziguamento e de fusão, num impulso de prece, com a mais alta síntese da vida?”.

E mais adiante: “Sua conclusão, isto é, o julgamento que ele fazia sobre o minuto em questão, era sem dúvida errônea, mas ele não ficava menos perturbado pela realidade de sua sensação. Com efeito, o que há de mais comprobatório que um fato real? Ora, o fato real estava lá: durante aquele minuto, ele tinha tido tempo de dizer a si mesmo que a imensa felicidade que o invadia valeria certamente toda uma vida”. Eis, portanto, a questão resolvida; a origem de seu poder criativo, de natureza epiléptica ou não, pouco importa. Mesmo que possamos nos perguntar legitimamente o que seria de um Dostoiévski que tivesse vivido em plena saúde, o que conta é a realidade do fato vivido, esta experiência inexorável que pode mudar a vida das pessoas e, mais raramente, produzir obras imortais.

– Tradução de Graziela Marcolin

Para conhecer mais
Dostoiévski – Os anos milagrosos. Joseph Frank. Edusp, 2003.

Did Fyodor Mikhailovich Dostoevsky suffer from mesial temporal lobe epilepsy? C. R. Baumann, V. P. I. Novikov, M. Regard e A. M. Siegel, em Seizure, vol. 14, págs. 324-330, 2005.

Temporal lobe epilepsy: a syndrome of sensori-limbic hyperconnection. D. M. Bear, em Cortex, vol. 15, págs. 357-384, 1979.
Sebastien Dieguez é neuropsicólogo no centro hospitalar universitário Vaudois, em Lausanne, Suíça.

http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/o_mal_sagrado_de_dostoievski_imprimir.html

A relação entre paixão e criatividade
Essas duas forças intensas, capazes de romper as barreiras da razão, muitas vezes parecem caminhar juntas; o resultado dessa associação são obras de arte, música e literatura de inestimável valor não só para artistas e suas musas, mas para toda a humanidade

 

por Erane Paladino

(Publicado na revista Mente & Cérebro, edição 200, setembro de 2009).

“Pois toda essa beleza que te veste

Vem do meu coração que é teu espelho;

O meu vive em teu peito, e o teu

me deste.”

Soneto XXII – Shakespeare, 1609

“Se entornaste a nossa sorte pelo chão

Se na bagunça do seu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu.”

Eu te amo – Chico Buarque e Tom Jobim, 1980

Quantas poesias, contos e romances têm falado de amor e de dor ao longo dos tempos? Encontros ardentes e avassaladores e paixões impossíveis, permeiam o imaginário de homens e mulheres e afetam pessoas de diferentes classes sociais, em variados contextos históricos e culturais. Parece haver um paradoxo entre forças intensas capazes de romper as barreiras da razão para jogar no infinito um oceano desordenado de sentimentos que, ao mesmo tempo, inundam a alma de amor… e medo.

 Quem nunca se viu, pelo menos uma vez, inesperadamente apaixonado? A condição pode parecer única àquele que a vive, mas as referências a esse estado aparecem de inúmeras formas, representadas por diferentes povos. Numa dimensão sociológica, podem-se discutir os limites entre movimentos históricos e culturais e/ou crenças como elementos propulsores de processos psíquicos inerentes a essa condição humana de “apaixonamento”.

Ao lembrar os referenciais existentes desde a Grécia Antiga, o sentido do amor vem associado a algo bom, belo e verdadeiro. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998), o psicanalista Jurandir Freire Costa refere-se a O banquete, de Platão e define o texto como representante do amor/sentimento único, inconfundível, universal e intrínseco à natureza do ser humano; um impulso dirigido a um outro, homem ou mulher, do sexo oposto ou do mesmo sexo, “um composto afetivo feito de desejo”. Na narrativa sobre o tema, Platão cria um encontro entre amigos num banquete onde o anfitrião, Agaton, chama a todos para um debate. Em seu discurso, Aristófanes apresenta seu conceito de amor: “…Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite e nem de dia vos separeis? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois serem um só, mortos numa morte comum.”

A ideia de falta e busca da completude presentes neste texto, escrito nos idos de 360 a.C., remete aos princípios do amor romântico. Tristão e Isolda, lenda celta com alguns escritos que datam do século XI, assim como Romeu e Julieta, de Shakespeare (século XVI), também seriam exemplos das histórias do amor impossível e arrebatador, que para ser eterno conduz ao desespero e à morte.

Mas, de qual amor falamos? Discutir esta ideia traz controvérsias. Na visão do filósofo André Comte Sponville, apresentada em Pequeno tratado das grandes virtudes (1999), há três manifestações: Philia, Ágape e Eros. De forma sintética, podemos definir Philia como o amor associado à amizade, ao companheirismo e reciprocidade, enquanto Ágape traz a ideia de benevolência e caridade de forma humanitária e desinteressada. Por esta ótica, a paixão se instala onde surge Eros, um amor a serviço deste deus ciumento e possessivo. O tormento e o prazer vêm juntos, pois este desejo, às vezes incontrolável, brota da falta.

Na origem da palavra Pathos, no grego, contempla-se a ideia de sofrimento, paixão e catástrofe. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) agrega um cunho singular ao conceito, articulando-o ao contato com o novo e associando-o ao padecer e ao agir. Diante da surpresa, somos impelidos a alguma reação que nos desacomoda. A vida, assim como a paixão, inevitavelmente pedem movimento e imperfeição. Se o que for passional sugere passividade, vê-se nessa manifestação amorosa o padecimento e algum tipo de subserviência a sentimentos intensos e também angustiantes. Afinal, o que seria de Tristão e Isolda se não houvesse uma espada a separá-los? Ou de Romeu e Julieta se não existisse a forte interdição entre as famílias? É fascinante observar (e sentir) no amor/Eros uma força inconfundível de prazer num encontro amoroso aparentemente único, carregado de momentos de plenitude, porém sempre acompanhados de forte angústia.

TEXTURA DA ILUSÃO

Quem é o objeto da paixão? Talvez aquele que traga a esperança do resgate de um elo perdido. A psicanalista Melanie Klein, inspirada em Freud, diz que o bebê, desde o seu nascimento, sofre uma angústia de morte diante de sensações como dor, fome e frio. Sua fragilidade física e biológica o leva ao desamparo emocional. O encontro com o prazer de ser acalentado e cuidado gera uma sensação de bem-estar vivida como plena. O mundo para um bebê seria traduzido por Klein em termos absolutos: a gratificação gera sensações prazerosas totalmente boas, assim como a frustração leva a sensações de dor, ameaça e sofrimento. “Bom e mau” representariam o maniqueísmo do universo psíquico do bebê em seus primeiros meses de vida.

A paixão faz reviver instabilidades deste vínculo frágil e primitivo de dependência e apego. O escolhido, objeto da paixão, geralmente, é alguém que representa a esperança de alcançar o objeto bom idealizado. Muitas vezes, a pessoa pela qual nos apaixonamos tem atributos sutis, capazes de ativar e trazer para o presente experiências afetivas de modelos da primeira infância. Detalhes como o tom de voz, a forma de olhar ou a textura da pele, por exemplo, podem ser mais importantes como elementos catalisadores da paixão do que outros atributos aparentemente bastante significativos. A imagem e as expectativas valem mais. Daí sua associação com a ilusão. Sensações de entorpecimento, carregadas de fantasias que parecem preencher por completo os enamorados, os levam a perder o apetite e o sono e a diminuir sua capacidade de concentração nas divagações quase surreais.

MEMÓRIA DA DOR

Diante da solidão e da incompletude inevitáveis da condição humana, surge a paixão com a fantasia e a promessa de uma vida plenamente feliz, numa tentativa emocional de retorno a algum estágio anterior que negue o desamparo, o medo e os limites impostos pela vida. O paradoxo, porém, está na força que acompanha o desejo – já presente nas palavras de Platão – de um encontro perfeito, onde duas metades se unem e se fundem – livrando-nos da dor. Mas só existe o desejo quando há a constatação da falta.

A paixão denuncia, tanto no adolescente quanto no adulto, a expectativa de uma vida sem dor, separação ou solidão. Este ideal de amor total emerge do vazio e do desamparo que ainda pulsa, grita e traz a memória de dor. Há nos primórdios do desenvolvimento uma lembrança do vazio, fruto da sempre dolorida separação mãe/bebê.

E como a vida surpreende, a depender das condições, é possível encontrar possibilidades, criar-se. Segundo o psicanalista Donald Winnicott, há um espaço potencial, uma espécie de área infinita de separação: o bebê, a criança, o jovem ou o adulto podem preenchê-lo criativamente com o brincar que, com o tempo, transforma-se na herança cultural. Pode-se pensar nas dores da separação como bases psíquicas para a expressão artística e para o trabalho criativo como meio de reparar e atribuir outro significado à dor. As telas de Frida Kahlo, por exemplo, retratam explicitamente seu sofrimento físico e suas perdas afetivas, assim como as obras de Pablo Picasso ou Camille Claudel expõem as angústias de amores difíceis.

Apaixonados incansáveis são os poetas, os pintores, os escritores, os músicos, ou mesmo os médicos, professores, psicanalistas… Em comum têm o fato de construírem um universo a partir de um mundo interior muitas vezes dolorido. De alguma forma, deve-se a eles toda a gratidão por terem a generosidade de expor ao mundo suas almas sofridas, num movimento criativo de reavaliação que acaba por tocar no âmago de cada um de nós, construir novos paradigmas, traçar sempre um novo olhar para as infinitas e, por vezes, impensáveis possibilidades.

PARA CONHECER MAIS

Pequeno tratado das grandes virtudes. A. Comte Sponville. Martins Fontes,1999

Sem fraude nem favor. Jurandir Freire Costa. Rocco, 1998.

O Brincar e a Realidade. D. W. Winnocott. Imago, 1975.

Também indico o livro “Amor”, de Maria de Loudes Borges, n° 44 da Coleção “Filosofia Passo a Passo”, da Editora Jorge Zahar.

O último cavalheiro

O argentino Jorge Luis Borges ganhou fama por escrever uma das mais originais obras do século 20, e tornou-se infame por suas posições políticas conservadoras. Novas fontes recuperam os ‘antepassados britânicos’ de Borges para mostrar que os dois aspectos não são irreconciliáveis.

Por: Gustavo Naves Franco

Publicado em 20/09/2010 | Atualizado em 20/09/2010

O último cavalheiro O escritor argentino Jorge Luis Borges no saguão do Hôtel d’Alsace, em Paris, em foto de 1969 (foto: Pepe Fernández).

Em maio de 1958, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (1913-1994), fez uma visita à América do Sul. Estavam previstos encontros com chefes de Estado de vários países do continente, mas o principal objetivo declarado do gesto diplomático era o apoio à posse de Arturo Frondizi (1908-1995), primeiro presidente eleito da Argentina após a queda, três anos antes, de Juan Domingo Perón (1895-1974).

Em todas as cidades visitadas houve protestos de estudantes e grupos de esquerda contra a presença de Nixon. Em Buenos Aires, no entanto, políticos e intelectuais assinaram um manifesto que condenava tais episódios.

Entre eles estava Jorge Luis Borges, diretor da Biblioteca Nacional e parte do corpo governista prestigiado pela visita, de modo que a inclusão de sua assinatura no manifesto não foi surpreendente. Nem por isso o próprio Borges, em um jantar na casa do amigo e também escritor Adolfo Bioy Casares (1914-1999), deixou de ver com bem-humorado estranhamento o nome de ambos na lista de assinantes.

“Parecemos um grupo de velhos tories”, ele comentou, referindo-se aos membros do partido conservador inglês. “Sim. De old fogeys [velhos rabugentos]”, acrescentou Bioy.

Por que o Partido Conservador britânico é evocado, e não a direita norte-americana?

Dessas falas podem ser extraídas uma constatação e um problema, que se complementam. A primeira é de que o humor e a autoironia não deixaram de ser traços marcantes da personalidade de Borges naqueles anos, em que pese sua aliança com setores mais sisudos e mais rabugentos da oficialidade local, dos quais não se esperaria esse tipo de comentário.

Já a pergunta que surge é a seguinte: por que velhos tories, e não velhos republicanos, tendo em vista a origem política do personagem que ele defendia? Por que o Partido Conservador britânico é evocado, e não a direita norte-americana?

Herança inglesa

Talvez porque Borges, muito tempo antes, já houvesse reconhecido em seu comportamento traços que atribuía à sua “herança inglesa”, referindo-se a parte dos antepassados do ramo paterno de sua família, bem como a algumas de suas mais admiradas referências literárias.

Entre essas características estavam o gosto pela leitura, certa domesticidade burguesa, a discrição, um humor sutil e a autoironia – ou seja, a capacidade de ver os próprios valores e atos em uma perspectiva distanciada, captando o que neles pode existir de patético ou ridículo, sem que isso signifique o abandono desses valores ou um relativismo descompromissado. 

Entre essas características estavam o gosto pela leitura, certa domesticidade burguesa, a discrição, um humor sutil e a autoironia

A postura adotada em 1958 – tanto ao assinar o manifesto, quanto ao satirizar o próprio gesto – estava longe de ser exatamente uma novidade em sua trajetória. Mas a celebridade que alcançou como um artífice de histórias ‘fantásticas’ e ‘irreais’ foi, por muito tempo, um entrave para a compreensão de aspectos realistas e moderados de suas posições políticas, expressos sempre com certo distanciamento irônico, mas já presentes em seus escritos desde os anos 1930.

Tais aspectos, por sua vez, estão na base da índole conservadora inglesa, também caracterizada por uma delicada e pragmática oscilação entre tradicionalismo e liberalismo. Nesse ponto, não me refiro aos tories em particular, e sim a um sistema de equilíbrio (político, estilístico e moral) que marcou a experiência de toda uma nação, e, em consequência, o ambiente do século 19, no qual a Inglaterra assumiu uma supremacia mundial incontestável.

Entender como um herdeiro consciente da declinante tradição oitocentista inglesa situou-se nos debates e conflitos da primeira metade do século 20 é, portanto, uma forma de entender a vida e a obra de Borges.

A artigo publicado na Ciência Hoje n° 274.

Gustavo Naves Franco
Departamento de Artes,
Universidade Federal de Ouro Preto

Infinitos rabiscos. Linhas descontínuas. Resultados uniformes num movimento circular multicolorido.

Eles rodopiam entre si num pátio fechado de um chão de quadrados padronizados.

Suas risadas! Seu tédio. Algo, tudo me enoja! Todas as suas cores se desfazem nas sombras que projetam no chão. Suas sombras se revelam e os revelam, tal como de fato são.

Suas cores, modos de verão. Flores! Pétalas, odores. Odor de manja, laranja e camomila. Capim Santo. Eles agem tal como pomares ou jardins.

Mas as sombras! As suas sombras, as sombras do único e do todo, do conjunto e do individual. Estas são o negativo no qual se revelam. São as marcas da identidade. Da realidade.

As flores secam. As frutas apodrecem e caem. A sombra surge e aumenta conforme se aproxima o meio dia e a hora de ir embora. O sol mais forte. As linhas mais intensas; o cinza mais contrastante. A vida que torna-se ex vida. Todos estão mortos.

Re-identidade.

Eu me vi. Eu me ou… Vi.

Eu pude ver-me por dentro e a minha aparência era tão simples, tão igual à que suponho ser a aparência dos demais! Semelhante eu era. Assim, num desenho em preto e branco azulado, esfumaçado e vacilante eu me revelei. Retrato de mim mesma que surgiu em poucos minutos, enquanto eu aguardava no corredor para ver-me, para reconhecer-me. Eu me visitei por dentro.

Eu pude ouvir-me por dentro. E eu soava em compassos simples como soam todos os demais, sendo os demais todos e qualquer um além de mim. Eu soava simples como o líquido que passeava em meu peito, bombeado com a força da medida da possibilidade da vida, da minha vida. Assim soava eu.

Eu. Simples em som e em imagem, assim como quem pode terminar-se, deixar de ser a si mesmo, a qualquer minuto. Eu. E em mim não se ouve e não se vê nenhum acorde secreto.