na minha mão havia aquele copo de café expresso, consideravelmente mais ruim do que simplesmente amargo, a necessidade de permanecer tanto acordada quanto atenta, e um cigarro tomado emprestado. sempre.
foi logo que a marca vermelha de batom invadiu, escorregadia, ensimesmada, o branco-isopor do pequeno copo e o topo do cigarro, que subia ao trajeto do seu próprio fim, mais doença que sabor de saber ser tabaco.
a sombra Dama de Vermelho, encarnada, não poupava nada que lhe estivesse próximo dos lábios.
e, coroa que passa, a Dama de Vermelho um dia serei eu.
serei eu que hoje me sou na lembrança de minha Mãe, do hollywood, ele também de marca vermelha, fechado nas digitais dos seus lábios.
o batom que lhe servia aos lábios se atirava também à face como rouge, blush, para baratear uma maquiagem que ainda assim não se apresentava como qualquer.
o batom servia à identidade Dela, à mulher altiva sempre notada, ao scarpim branco emprestado de Johnny-Julia, ao vestido de botão aberto até uns 3/5 de si. servia também à construção da menina-eu aos 8 anos, ‘inda não percebida como perdida nas tantas possibilidades de ser.
desengonçada.
boazinha.
e tão cheia de dores.
a Dama de Vermelho no alto de seus sapatos, como se tronos fossem, que se impõe contra qualquer muro que a pudesse esconder. eu, no baixo dos meus calçados arrastados, dos meus olhos visando o horizonte do chão.
Ela no recorte de um decote, no macio das mãos e no colorido de unhas – vermelhas, um toque, vários toques.
eu, escondida num capuz escuro, o casaco usado por tantos anos na escola e na vontade de desexistir completamente, nos dedos entortados numa cor banal de pele mestiça, onde se apoia o princípio de um vício – um eu querendo me fazer de ela.
de novo. fumaça.
Ela disse querer uma filha.
e já havia chegado aos 30 e tantos. Ela colecionava laços, fitas, por entre meus cachos, como quem não pôde brincar com bonecas num tempo que se foi.
fome, falta.
para quando tudo passasse: um futuro de filha.
“ah, um futuro, minha filha”.
mas ela também passou.
Ela disse querer uma filha.
suas fitas se romperam em meu cabelo curto aos 25, e eu me tornei uma gama amadurecente de afetos por mulheres tantas, para além dela e do que, com ou sem sucesso, buscou fazer de mim. suas fitas se refizeram ao meu modo de misturar medos que se avermelham em cor – meio desbotada, descuidada – e em minha prática – intensificada.
filha. falta. desengonçada. fumaça.
fumaça vermelha.
(de saudades).