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Monthly Archives: December 2016

na minha mão havia aquele copo de café expresso, consideravelmente mais ruim do que simplesmente amargo, a necessidade de permanecer tanto acordada quanto atenta, e um cigarro tomado emprestado. sempre.
foi logo que a marca vermelha de batom invadiu, escorregadia, ensimesmada, o branco-isopor do pequeno copo e o topo do cigarro, que subia ao trajeto do seu próprio fim, mais doença que sabor de saber ser tabaco.

a sombra Dama de Vermelho, encarnada, não poupava nada que lhe estivesse próximo dos lábios.

e, coroa que passa, a Dama de Vermelho um dia serei eu.

serei eu que hoje me sou na lembrança de minha Mãe, do hollywood, ele também de marca vermelha, fechado nas digitais dos seus lábios.

o batom que lhe servia aos lábios se atirava também à face como rouge, blush, para baratear uma maquiagem que ainda assim não se apresentava como qualquer.
o batom servia à identidade Dela, à mulher altiva sempre notada, ao scarpim branco emprestado de Johnny-Julia, ao vestido de botão aberto até uns 3/5 de si. servia também à construção da menina-eu aos 8 anos, ‘inda não percebida como perdida nas tantas possibilidades de ser.

desengonçada.
boazinha.
e tão cheia de dores.

a Dama de Vermelho no alto de seus sapatos, como se tronos fossem, que se impõe contra qualquer muro que a pudesse esconder. eu, no baixo dos meus calçados arrastados, dos meus olhos visando o horizonte do chão.
Ela no recorte de um decote, no macio das mãos e no colorido de unhas – vermelhas, um toque, vários toques.
eu, escondida num capuz escuro, o casaco usado por tantos anos na escola e na vontade de desexistir completamente, nos dedos entortados numa cor banal de pele mestiça, onde se apoia o princípio de um vício – um eu querendo me fazer de ela.

de novo. fumaça.

Ela disse querer uma filha.
e já havia chegado aos 30 e tantos. Ela colecionava laços, fitas, por entre meus cachos, como quem não pôde brincar com bonecas num tempo que se foi.
fome, falta.
para quando tudo passasse: um futuro de filha.
“ah, um futuro, minha filha”.
mas ela também passou.

Ela disse querer uma filha.
suas fitas se romperam em meu cabelo curto aos 25, e eu me tornei uma gama amadurecente de afetos por mulheres tantas, para além dela e do que, com ou sem sucesso, buscou fazer de mim. suas fitas se refizeram ao meu modo de misturar medos que se avermelham em cor – meio desbotada, descuidada – e em minha prática – intensificada.

filha. falta. desengonçada. fumaça.
fumaça vermelha.

(de saudades).

quem segura gentilmente
a corda do balão que quer ir?
a corda está à vista
em que não está o balão

como encaixar os pés na corda
para que ao bambiar divirta
e não destrua?
os pés até podem desejar terra
a corda está sempre na companhia de um lugar
que não é algum

há sempre o instante
o dia de questionar
algo entre ser-surtar
haverá sempre dia-estanque
para perguntar
romper’partir? segurar?
haverá sempre o instante-cria
de pés, balões e cordas
que amarram ou desprendem
que amarram e desprendem…

“Sei, irmãos, que todos já existimos, antes, neste ou em diferentes lugares, e que o que cumprimos agora, entre o primeiro choro e o último suspiro, não seria mais que o equivalente de um dia comum, senão que ainda menos, ponto e instante efêmeros na cadeia movente: todo homem ressuscita ao primeiro dia.
Contudo, às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte, imperfeita e temporária, no próprio decurso desta vida. Morremos, morre-se, outra palavra não haverá que defina tal estado, essa estação crucial. É um obscuro finar-se, continuando, um trespassamento que não põe termo natural à existência, mas em que a gente se sente o campo de operação profunda e desmanchadora, de íntima transmutação precedida de certa parada; sempre com uma destruição prévia, um dolorido esvaziamento; nós mesmos, então, nos estranhamos. Cada criatura é um rascunho, a ser retocado sem cessar, até à hora da liberação pelo arcano, a além do Lethes, o rio sem memória. Porém, todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do espírito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio de trevas; a passagem. Mas, o que vem depois, é o renascido, um homem mais real e novo, segundo referem os antigos grimórios. Irmãos, acreditem-me..”

(páramo – joão guimarães rosa)

linhas retas não me funcionam. datas organizadas não me funcionam. agendas, divisórias, calendários, blocos de nota, post-its que formam desenhos. sei ser boa admiradora – “isso aí que você faz, que lindo!”. até tento. com cada um deles. antes de serem esquecidos, atormentam. talvez um pouco menos do que um saldo bancário – aquela folha de papel amarela e vazia, um nada que nunca tanto disse. e diz, que diz, que diz e diz.
entre canetas coloridas, e gliter, e cheiros, e estratagemas – pra tentar. e não ser ninguém. eu tento eu tento e tento até conseguir. por quase exatas 27 horas. até me encolher no espaço dividido com um bolo enorme de roupas. lamentando. projetos?
não sei achar os problemas. nem os temas dos problemas. nem as justificativas dos temas dos problemas – ou a justificativa sou eu. ou o tema sou eu. o problema soy yo.
era uma vez aquela menina que no começo do ano ganhava o fichário bonito.
sem conseguir evitar rasgar metade das folhas ou quase. ou pedir emprestado, por esquecer a outra metade em casa. e sem conseguir não rabiscar o fichário com os nomes de todas aquelas bandas. metal, punk e música evangélica.
era uma vez a menina do brinco verde de acrílico quadrado. meses depois quebrado em mil pedaços, no descuido de nem saber guardar. foi comprado na violência de amenizar o uniforme. masculino. o único que deixava confortável. o conforto me serve tal como linhas não me servem. aquela porra balançando na minha orelha e na minha cara me tirava do sério. mas eu sempre sonhei em ser bonita. e o sonho do desajeitado torna ele ainda mais distante, ou presente por exatas 17 horas.
esse short é de menino.
esse tênis é de menino.
cabelo escondido preso não é coisa de menina.
esse jeito desjeitado não é de menina.
“ah, hoje tem festa. vai bonita, tá?”
“você precisa melhorar a postura. levanta a cabeça e ajeita as costas. se melhorar, te dou um cd da xuxa!”.
eu odeio xuxa. chorei. 26 anos mirando o chão e curiosa pra girar o disco ao contrário.
essa letra não é coisa de menina.
bic azul que escreve letra que não é coisa de menina não é coisa de menina.
a letra tá zanzando pelas linhas. a letra ora é maior, ora é menor. porque você simplesmente não escreve em cima delas, certinho?
a virginiana na padaria disse – “moça, a etiqueta do seu casaco tá pra fora. posso ajeitar?”. e eu queria responder que nada a ser ajeitado poderia ajeitar qualquer coisa.
peguei o pão. atravessei fora da faixa. linhas retas não me funcionam. a etiqueta voltou a ser vista. até tento.

“Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como hoje se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.”
(Saramago – que aniversariou estes dias).

Ao ler este trecho hoje, exatamente diante do contexto de tudo o que tem acontecido nas escolas e universidades, pensei sobre como seria bom se todo aquele que pretende se entregar ao mester, ao ofício, à profissão de professor buscasse integração com o movimento estudantil, buscasse se integrar com afinco às ocupações, às ilhas (para muitos) desconhecidas da militância da juventude, infelizmente ainda tão cercada de preconceitos.
Se não sairmos de nós – deste “nós” das posições hierárquicas às quais normalmente nos submetemos e buscamos submeter as pessoas; deste nós das prioridades produtivistas; deste nós do “eu ensino e você aprende” – , não poderemos nos compreender, nem compreender projetos de coletividade e de transformação por inteiro.
Não sei se já é época de resoluções de ano novo, ou se há época certa para desejar algo, mas desejo, sempre: desejo que aqueles que desejam ser professores se joguem por estas ilhas, as ilhas do atrevimento, da construção coletiva, do enfrentamento.
Desejo que parem de se submeter aos discursos sobre as tais “Qualis A1”, “Capes 7”, e outros tantos que vejo sequestrando diariamente pensamentos, ideias, prioridades, mentes e até mesmo momentos de lazer e interação.
Desejo ocupações reivindicatórias constantes, lotadas e repletas de interações que superem papeis pré-estabelecidos.
Desejo os halls centrais das faculdades de direito – estes prédios cafonas que tentam reproduzir pompas romanas e gregas de dominação – cheios de cartazes, de gente fazendo música e poesia, de gente propondo, de gente construindo e destruindo.
Desejo gente caminhando pra muito além dos ofícios que prendem ocupar, gente ocupando tudo o que puder e caminhando pra ilhas ainda desconhecidas, pra além desses prédios com estátuas e decalques de balanças, louros e caras e nomes de homens brancos e grandes proprietários de 1 ou 2 séculos atrás ou mais.
Desejo, desejo, desejo…

“não sou eu me movendo. é o ritmo da água que faz o ritmo das 16h e dos quase 40 graus Celsius. é o balanço de vento doce e espelho de sal-sol.
não sou eu estagnando. é a janela por onde avistamos metros que formam quilômetros de concreto e um tanto de coisas paradas por onde nos movemos. é a permissão de andar sobre águas e por entre barcos e revoadas que descem para pescar junto.
há uma placa que diz 13 km e há outra que diz 552 km. as placas são a mesma placa que aponta uma direção que é quase mesma antes de precisar se afastar.
de onde pra onde, se onde é um por quê e é um espaço que é justamente aqui?
há um caderno e uma caneta em mãos. há um livro com nome de mulher e umas roupas ainda meio molhadas e tascadas num resto de perfume. e há eu dizendo que é claro que não precisava ser de uma primeira, nem de uma segunda, nem de uma terceira e nem de nada que caiba em qualquer contagem.
nem de sacolas. nem de malas.
nem de dias em que consegui cortar fitas que inauguraram abraços e outros gestos destes que falam em proximidade. nem de dias em que prometi romper mais pra fora, menos pra dentro. nem de dias inundados de afetos, ainda que estes sejam pequenas parcelas de raiva.
há a janela, que é porta, que é ponte, que é cais para um calor, há um eu que se acostuma. há um eu que vai ficando.”

(imagem – batalha nas nuvens – s. dalí)

 

dali